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guarda-sol em chamas.








à sombra do flamboyant, mas com meu chapéu texano
enfiado na cabeça, acho um sarro o balé de carros e
pessoas-formigas-saúvas num vaivém indescritível;
máquinas-pessoas, pessoas-máquinas no centro da
capital, e um mendigo jogando pipocas às pombas
como se nada existisse ao seu redor. a poluição
sonora e do ar deixam-me maluco a ponto de vir-me
à ira em que eu estivesse num ponto alto com uma
metralhadora e granadas para destruir o cenário.
acendo um cigarro e vejo uma adolescente com
uma criancinha no colo irromper da fila desorganizada
aos olhares de pessoas céticas, desumanizadas.
penso que sempre brinquei com a sorte e em atos
de puro desespero, às vezes, na matriz de um relógio
parado, adentro e me ajoelho sem sequer saber rezar.
mas rezo com frases que invento na hora, tão
circunstanciais nos meus estados de espírito por problemas
que crio e recrio no afã de manter-me vivo, livre
do xilindró de seres comuns na fotocópia do dia.
resmungo abecês  de autoenganos como se estivesse
num pedestal acima do bem e do mal.
como com os olhos ninfetas com seus jeans de cós
abaixo das calcinhas e suas miniblusas de peitinhos, por
enquanto, empinados. lembro que fui jovem e não havia
tanto desejo em mim. parece que o que mais desejo hoje
é tudo que não posso ter, por isso desentendo meus
52 anos de sonhos irrealizáveis que escoaram entre os
meus dedos. ah, esta árvore de lindas flores vermelhas!
ah, a primavera vindo num raio de sol entre os prédios!
ah, a sirene da polícia! ah, a ambulância barulhenta
abrindo caminho no engarrafamento! ah, uma carrocinha
puxada por um jumento e o carreteiro  me dá um olhar de
desprezo vendo-me com este chapéu 20X, bem melhor que
seu boné esfarrapado. ah, castigo!, ninguém para pra falar
comigo até sobre a merda do futebol e se eu prefiro votar
em tal presidente, em qualquer senador, deputado,
depois de assistir na televisão de um bar de vagais o
cômico-comício de quem abusa de minha inteligência.
ah, minha sorte, mas que sorte em ser brasileiro!, penso.
se eu soubesse escrever faria poesias só pra gentes
marginais, que vivem à margem da roda viva, pois os que
assim vivem veem de fora pra dentro, acho.
já faz duas horas que estou aqui e os pardais fazem serenata
nas copas das árvores; os sacoleiros recolhem seus balangandãs;
os religiosos, a caixa de som; ah, e um bando de ciganos
param os transeuntes para lerem suas mãos por 10 reais,
dependendo da cara do freguês...
sou só mais um número de cpf e rg querendo uma casa no
campo no canto de elis regina; sou o romeiro da romaria
de renato teixeira, 'ih!' que elis também gravou. gozado,
me vem à tona a letra da música: 'criança feliz, feliz a cantar,
alegre embalar seu sonho infantil... ó meu bom jesus que a
todos conduz, olhai as crianças do nosso brasil...'
já nem se canta mais essa, ficou cafona como meus rocks
dos anos 70... deixa pra lá... os generais já morreram!?
tomara que não, tomara refreiem o comunismo e a pseudodemocracia!!
preciso falar com alguém, que porra de introspecção!
ei!, lá vem o velho do realejo... preciso tirar um cartãozinho
da sorte... acho que tenho 1 real no bolso.
vou colher umas flores e levar no túmulo de minha mãe e pai.
é aqui pertinho, duas quadras! espero que eles me escutem.
caramba, preciso descolar um trampo. meus sapatos parecem
bocas de jacaré. 
(1982)


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