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DO TOPO AO FUNDO



textos de minha mocidade. 1977. 'saudade!'





DO TOPO AO FUNDO




Viúva fogosa vivia de pensão. Gostava da noite e à

noite se rendia, até que um dia:
- Amor vou viajar. Vou ficar fora um mês. Regue as
plantas e pague as contas.
- Eu?!


Pegou várias malas e saiu. Deu um aceno feliz da vida

cantarolando "Lisboa velha cidade..."


Ele continuou ali, estático. Deu um clique no mouse: o

banco fechara sua única conta. Outro clique: sua
namorada virtual estava desistindo dele. Chorou à frente
do computador.


A viúva não lhe deixara nenhuma informação, nem donde

ia, nem fone fixo, nem celular, nem dados virtuais, nada.


Enfiou a mão no bolso do terno surrado, tirou um maço de

cigarros já que anteontem comprara dois pacotes, fiados,
no Bar do velho Ernesto. Nunca trabalhara registrado.
Vivia de bicos, escassos. Embora fosse talentoso, era
vagabundo. Tudo bem. Tinha cigarros, café e algumas
provisões no armário, na geladeira. Por que se preocupar?


Passaram-se quinze dias. O cigarro acabara. O café, idem.

Na geladeira, um pote de maionese, frutas murchas,
batatas em decomposição. Armário zerado. A casa imunda,
totalmente fechada, cheirava mofo ou bolor, tanto faz.


Foi até o bar. O velho Ernesto não lhe deu crédito, pois tinha

ordens expressas de sua amasiada, a Josisandra. "Vou comer
meus papéis - disse consigo mesmo."


O papel também acabou. Não o higiênico, que não fazia a

mínima questão. Usava jornais antigos. Lógico, após lê-los
sentado no trono.


Toc-toc-toc! Bateram à porta. Abriu. Ação de despejo.

Levaram tudo: os móveis, o computador e a impressora...
Ficou somente com suas roupas e mais de cem poeminhas
(quadras em geral) impressos em papel sulfite A-4.


Duas malas. Saiu. Ir pra onde? - pensou. Não tinha parentes.

Seus colegas eram os bêbados decadentes do bar, tão ou
mais infelizes que ele.


Saiu pela estrada de cabeça erguida. Nunca roubara, nunca

matara. Mas era genioso, egocêntrico, difícil de se conviver.
Começou a esmolar quando seus trocados acabaram.
Primeiro vendeu seus objetos de uso pessoal: relógio,
anel, corrente. Suas roupas e uma das malas num brechó.


Teve uma grande ideia um dia. Em cada casa que parasse,

ofereceria um poeminha em troca de um banho, uma refeição,
um café, um cigarro, etc.


Assim se foram dois anos caminhando, caminhando sem

propósito. Ele não sabia onde queria chegar. Perdera todos
os sonhos pelo caminho. E de porta em porta rabiscava, no
ato, um texto de amor, sonho, de lembrança, de saudade...


Teve um editor muito esperto que lendo por acaso alguns

textos do andarilho, resolveu recuperá-los oferecendo um
brinde por cada cópia e/ou do original. Reuniu quase tudo
e fez um livro em outro país creditando a ele a obra.


Ouvi rumores um tempo atrás de que o poeta tinha ficado

lelé. E, debaixo do viaduto, não sei de que cidade, gritava
a todos:
- Eu sou artista! Eu sou artista! Sou muito respeitado no
meio acadêmico!


(3/12/ 77)



lelé - louco, lunático





***