"Acho que hoje, 05/09/14, amanheci saudosista..."
TEXTOS DE MINHA MOCIDADE
(1976)
O que não vivi, mas sonhando eu viveria.
No meu universo noturno havia miragens de tantos
dias que o cansaço fazia-me dormir pra nunca mais
acordar. Eu pensava em progredir, fingir não sofrer e,
de tanto sofrer, de outras coisas me cansava. Dormia
de dia e à noite passava em claro. Seria esse ano, 1976,
um bom ano para morrer e ludibriar a alegria futura
de ver-me, em 2000, curado de meus presságios
atuais?... Só esta pergunta enchia-me de esperança
pra continuar até o presente instante.
Incomodado, fiquei só nesta noite, e em todas em que
visões desconexas, inexplicáveis, fizeram-me relembrar outros
tempos passados de minha riqueza, de meu sucesso...
riqueza simples de um corpo sadio, de olhos perspicazes,
de pernas cortando as estradas em disparada para levar um
recado, um bilhetinho.
O que sou agora neste sonho noturno?... De tantos pesadelos
tento acordar visando o amanhecer que será, fatalmente,
um dia claro de céu azul para trabalhar. Chega de bobagens!
Na verdade sou um parasita, um inútil, que há muito
sobrevive nesta cadeira... querendo se levantar, viver junto
à esta sociedade de sonhadores que sempre me dá um olhar
de compaixão. No fundo não faz questão de me precisar...
Tenho 48 anos e amor duma mulher nunca experimentei.
Minha única alegria é sorrir dos desgraçados que me
fizeram chorar.
No meu desabafo tudo está ao meu alcance. Sinto-me perfeito
andando nas ruas, nas praças. Encaro um homem como homem.
Faço proezas sem saber o que se passa no mundo. Minha visão
noutro relance não existe, mas, se pego o jornal e não consigo
lê-lo... - digo a mim mesmo: 'o que me faz continuar?... '
Tenho que me alistar no exército, servir à pátria... os generais
precisam de mim... em muitos desfiles patrióticos marchei sem
saber porquê... tempos escolares... bons tempos vislumbro
em retrospectiva...
Meus senhores, vou ignorar que sou cego pra que antes que eu
acorde diga mais algumas palavras do que sou realmente,
já que minha mãe, tão submissa, me carregava
no colo se meu pai permitisse. Minha mãe era uma santa.
Morreu sem provar o sal da vida, morreu na pobreza.
Morreu sonhando dias melhores em viagens que faria a
Portugal a fim de desenterrar sua árvore genealógica.
Continuando, só de relembranças respirando, vejo a tristeza de
meu pai quando me olhava; vejo que, quando ele dormia, em seus
sonhos também desconexos, indescritíveis, eu lhe respondia
suspirando que queria ser o que ele queria que eu fosse.
Quanto o desencanto me assombra se já minhas forças estão
só na mente e o corpo não obedece. Triste é este meu destino,
se sou incapaz e vegeto até em minhas palavras. Ouço os pássaros,
não os vejo; ouço o rádio, músicas dançantes são para os normais;
ouço desavenças, exclamo! e ninguém me vê...
Do mundo não sei nada. Talvez eu seja privilegiado, talvez não.
Porém, sei que o mundo é um vazio sociológico dentro da própria
sociologia. Sei que é uma orquestra sem maestro. Sei que é um
conjunto de regras, de muitos parágrafos que penso que entendo.
Sei que é um sonho dentro do meu acordado. Escuto a orquestra
sem maestro e sou leigo no assunto. Acho que a música é de
primeira qualidade... acho que estou fugindo um pouco... acho
que vou acordar. O sonho é passageiro como o dia.
Amanhã outras bobagens direi. O amanhã, pra mim, é todo dia.
O escuro de meu mundo leva-me a hesitações momentâneas
de nem saber onde estou, de não saber apreciar miragens reais,
e só me dedicar a pensar em tantas coisas belas sem nunca
tê-las conhecido.
Assim é o meu tudo reduzido à minha pessoa, meu escuro.
Meu dia é claro, apenas imaginário... Estou vendo uma lâmpada.
E continuarei a vê-la, penso, se o que sobrou de mim for
enterrado com uma placa a ser desnotada em qualquer lugar
por quem nunca soube que eu quis ser um grande ser, sim,
um ser que flertou com a felicidade.
***
***