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Entre o bem e o mal.





(MONÓLOGO)



Óia que já matei mais de cem só lá pros arrabalde dos Buritizeiros.   Me alembro mais dum padre cá de Cascateiro... hum... sujeitinho respeitado, mas dizia o povaréu qu’ele tava roubando os dízimos dos coitados e entregava tudinho na  mão do coroné Salestiano do cu virado, eh, eh. Aí rapaz, peguei
o dito-cujo na senda dos Carrapichos e nem pedi perdão. Dei logo três facadas que borrou de sangue
minha camisa parda, sortera de acerto, eta! – ah, mas na missa seguinte tava eu lá rezando pela sua alma. Num sei, parece que de repente o diabolo, cruz credo, entra na minha cachola e
quando vejo o sangue espaiando pra todo lado e vejo a cara do desinfeliz, me dá uma... como se diz...
ah!... sensação de aliviamento de minha raiva. Mas despois eu me arrependo... mas trabalho é trabaio, ne´não? Nessas horas de acerto eu desacredito em Deus, será? Mas Deus existe: bichim,
bichim cabra da peste é Deus.

Um dia quando os capangas do Zé Filisteu me cercaro na encruziada das Sete Velas, eu tava em  cima do barranco: de repente o céu se fechou, breu total, e um toró de pedra de gelo começou a
 descer só onde os cabras se amoitavam, hum, ahn-ahã,  e o riacho se encheu com tanta água que
os cavalos ao invés de virem em minha direção, refugavam e relinchavam como o demo... era só
bala que triscava minha orelha: zuem, zuim! Levei dois tiros: um na coxa e outro no ombro.
Fui me arrastando por entre o capinzal até a noite. Cheguei ao rancho do Rato Zebedeu, tomei logo
uma pinga que ele mesmo fabricava, tirei da bota minha faca de luta corpo a corpo, pus o lenço na boca e falei prele retirar as balas. Credo em cruz que dor. Fiquei lá uns dez dias amoitado até que o Chefe mandô uma carroça me buscar. Tá vendo. Daquele dia em diante comecei a crer que Deus existe pra desembestar o demo, né não?  Também matei um Almofadinha que veio da cidade grande e logo foi se achegando pros lado da Rivaldina Pereira, caboclinha cheirosa, que conheci lá nas
barrancas do Rio Grande. Eta! Foi amor de espanto, credo em cruz, oia qu’ela fazia um cuscuz de
lobó e um chá de erva brava que levantava inté defunto, eh, eh. Mas, como ia falando – o tarzinho,
sujeitinho de cara lisa e terno com uma rosinha na, como se diz... lapela, acho, é... no bolso
do lado esquerdo – ahn, parecia meio que... molengo demais, meio que...muiezinha... num é que
 começou a olhar pra Dina com olhar, cruz credo, do demo! Num aguentei tamanho disparate e deseducação. Esperei o dia que o tarzinho fosse a aldeia, umas doze léguas mais ou menos, e na
 Capoeira dos Aflitos meti logo duas azeitonas na cara dele. Eh, eh, o terninho do bicho-grilo
ficou vermelho e o pó cobriu sua cara de bunda de nenê. Aí num foi trabalho, cê sabe, foi não: foi
desavergonhação e honra. Sabe que mato mas tenho honra de homem macho também.
 Matei muitos cabras matadores. Um que me lembro foi o Dionísio Alves, valente, oia qu’ele
fazia inté as galinhas botá dois ovos no mesmo dia, sabe como, né? Ahn, ele tava roubando o
Gado da Fazenda do Pau Arcado lá pelas bandas do Cipozal da Onça. Além de roubar e matar,
que até aceito como coisa de macho de empreita, ele e seus jagunços se aproveitavam das donzelas
 e havia uma disputa entre eles, óia só, que no fim de cada ano aquele que tivesse tirado mais, como se diz, mais a inocência do meio das forquilhas das virgens -- ganhava um prêmio em dinheiro, uma
 bota de cano alto, um revólver de coronha branca e uma faca de aço alemão. Certa vez, num tiroteio entre nossa patota e a deles, cruz credo, num quero nem lembrar -- o cabrão ficou sem
munição detrás dum grosso pé de pau de carnaúba cercado de bambu. Era noitinha, lembro bem,
os pipocos zumbiam de lá pra cá e,  como tenho olhos de lobo guará – me aperreei pro seu lado
 feito cobra jararaca,  mas,  pra não fazer barulho, eu lesmava às vezes --,  catei
o bandido pelas costas, ah, ahn, ele inda disparou três vezes, mas, eh,
eh, num saiu bala nenhuma. Na primeira facada que dei ele gemeu de dor e ainda tentou
se manter de pé segurando em minha camisa.. de, ou...será?...será?... ou
meió, na minha farda  de dia de acerto. Dei mas duas facadas só que na parte da frente,
ah, enfiei até o cabo, deu até gosto. Num tô certo. Onde já se viu homem de honra currar
qualquer coisa que faça cocô. Credo em cruz: o sujeito era do demo, eh-eh, mas num teve
salvação. Cá pensando com meus botões e arranhões que ganhei por este sertão mundo afora,
será que fui objeto de Deus pra fazer justiça? Será que Deus não podia só  meter um raio
na cabeça de quem não presta?.. É, mas teve um dia quando eu vinha dum trabalho, quando de repente meu cavalo desembestou e num obedecia meu comando. Quando vi que ele se aproximava dum penhasco -- o... qual mesmo? – ah! o Buraco do Inferno ---, me apinchei do seu lombo e caí
 numa grande moita espinhosa, ahn, ahn, Deus me livre! Me alembro que inda ouvi Pé de Vento
dar o relincho final como que se chamasse pelo meu nome, cruz credo, dá inté arrepio.  Carambolas, eh, eh, a Rivaldina ficou até de madrugada tirando os espinhos de minhas costas. Quando contei pr’ ela o fato, ela me disse que é coisa do demo... que ela ouviu, um dia,  o Padre...é...o safado, cordeiro do coroné Salestiano, pregar essa passagem lá na missa na Capela de Todos os Santos... ah...é...
Ela me disse que um tal de Jesus, cabra bom demais,  desen...demoniou uma pessoa e
tacou os demônios  pruns porcos. É, acho que o demônio passou pro meu cavalo. Naquele dia,
eu,  que não tenho medo de cabra algum, senti medo, pois meu inimigo eu não via, cruz credo!
Foi ali que resolvi parar com minha profissão. Dizem que o demo existe. Dizem que Deus
existe. Ninguém nunca viu, mas aqui do alto de minha varanda fico meio atordoado de
ficar pensando nisso. É.  Tem o bem e o mal. Já me arrependi de tudo de ruim que fiz.
Mas, por um bom dinheiro me ponho a galope e vou fazer um ajuste de contas com um cabrão,
grileiro, que anda metendo fogo lá nas matas do Rio Acima. A fumaça tá chegando aqui. Vou
mandá um bilhetinho pros que sobraram de minha turma. Oia, oia, hein. Dizem que cachorro velho
perde o pelo mas não o faro... cruz credo! Vô tomar um chá de erva brava e sonhar c’ os anjos...
mas num sei... quando óio meu cinturão de balas e minha faca pendurada junto com minha traia
tem uma vozinha que fica me assobiando: vai..vai... ou vai afrouxá?



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