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Carta a mim mesmo




Carta a mim  mesmo


Já nem sei se sei se digo algo interessante,
e se tudo que escrevi tornou-se cafona na gaveta
empoeirada do quarto escuro, forrado de teias
de aranha.

Já nem sei se sei se repito as mesmas coisas
doutras formas, e se o bem-te-vi, no beiral do
telhado, canta só pra mim. Já me despi das
fantasias e dos fantasmas que criei. Cansei da
artificialidade. Sou apenas um animal no
contexto.

Já não vejo sentido em acender um cigarro e
sorrir em festas sociais. Já não me apraz o
poema que me alimenta, pois, exalo-o a partir
de meu baixo nível cultural, mas o mesmo é-me um
prato sem sabor.

Já não sei se sei se ainda consigo ver além do que
está apontado pro meu nariz; além dos olhos alheios,
dos meus; o que eles transmitem em mensagens falsas...
Já não espero impactar nem iludir, nem fazer sonhar
tantos espectadores de minha vã sobrevivência.

Já não sei se sei fazer rir, refletir e chorar. Já li mil
livros e não consigo me espelhar. Já andei quilômetros
a esmo à procura duma resposta fugidia. Já me calei
quando devia gritar. Já gritei quando devia me calar.

Já não sei se sei se tenho uma tela em branco, e meu
comodismo desnota as tintas coloridas que pintam
meu neutro inspirar. Já não tenho nem o belo nem o
feio. E nem me importa se a morte ou a vida irá
me emboscar.

Já nem sei se sei se amo me odiar ou odeio me amar.
Já nem sei de meu eu robotizado. Já nem sei de tudo
que me resta saber, se valeu chegar até aqui. Tantos
já morreram sem saber de mim e eu deles. Muitos não
sabem e nem saberão que sou o passageiro solitário
que, até aqui, tenta juntar cinzas ao vento pra delas
preencher o vazio futuro, torná-lo visível.

Já nem sei se sei se tudo que renasce em mim é só
a dúvida de um espírito que me acoberta, mas me
desconhece. Isto eu sei, mas não consigo revelar,
apenas sentir. Efêmeras são minhas palavras...




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