Translate

Maria Pequena







A menina da favela é bela
seu viver é a sós
longe do mundo, sua cela
de pureza na podridão atroz
dos perdidos pela condição
que o sistema sela
e gela meu pensar nela
alienado da ficção.

Mas quem é ela
ao acordar, abrir a janela
gritar o nome da cadela
a chegar, não pelos olhos
mas pela saliência da costela?

Vira-se ao espelho
a refletir paisagens, edifícios
o dia dá seus indícios:
hoje tem ramela, boca suja,
ois, café, margarina, pão,
mão lavada - puxa!
o lápis, o caderno, a lição
conta de mais sabe a sapeca
e se lembra das figuras de boneca
das tribos que têm televisão...

É bela a favela da menina
pai já foi
mãe vem da esquina
com balde d'água da mina
pro arroz-feijão duma sina.

Lá está ela
no meio da rodinha
pulando amarelinha:
"Um, dois, três..."

Barriga cheia
louça lavada
banho de gato
à escola esperada.

Vestido já vestido
cabelo penteado
escova sem pasta
sandália de sola gasta
lancheira rasgada
leite com água mesclado
pão requentado
na toalha de algodão
opa! um trocado
que faz bem
sem ter que ir a estação
nem vagar de trem.

-- Cadê a Peteca?
-- Não sei dizê não fia,
ela tava com uns bicho na oreia,
quando pai vié eu conto. 

Mãe da janela
mira a menina amada
pela viela
num grupo de molecada,
um tchau temporário
que prima pelo primário
de sabê-las santas
em casas de sobras tantas.

Da escola municipal regressa
cansada, fome lhe assanha
um bodoque frito na banha
a sua manha... meu olhar
de nesse inocente regresso
ter meu cálice transbordando
socorro por ela peço.

Pai chegou
mistura a janta tem
Janete prepara o omelete
João sacode o neném
são quase sete
sorrisos, Peteca lá vem.

Minha tristeza
pai, mãe e filhas na mesa...
minha alegria
de vê-los contemplar
o 'prazer' de mais um dia...
hoje não fez arte
e de abraços
a subnutrida está sadia.

Rótulo da noite
dente dói
a menina chora
se apaga a favela
no último olhar da janela
ela ora
na cama mal-cheirosa
lhe conforta minha prosa:
"nina, menina, nina
te nino no colo
choro de você...
cantarolo:
-- lá vem o pato
pato aqui, pato acolá
nenhum pato quer saber
o que é que há."







(rehgge, 2/87)



***