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a temporã.





o pó cobre os corpos
cobre o verde desértico
da vegetação teimosa
da planície arenosa e das escarpas
e, ao sopé dos montes
pegadas de pés descalços
de mulheres voltando das fontes
aos seus lares
...
regresso com seus temores
e tristes olhares
sem as cantigas peculiares
de seus santos ajudadores

hoje não tem não
carne-seca nem água no feijão
hoje não sairão banhar-se todas
contemplando às estrelas
em um conto regional de morrerem
e um dia sê-las

hoje tem
a fome circundando os quintais
cantada pela desgraça do violeiro
que fala dos temporais
que fala do rio transbordando
mas nunca por ele navegou

'o pôr-do-sol é um quadro horizontal
maravilhoso demais e, ausente
faria secar a tristeza dessa gente'

aves nômades rumam para o mar
as daqui já foram nativas
...
e tantos animais de costelas salientes
tombam impotentes
e tantos animaisgente
tombam indo e vindo
sedentos da chuva chegar
...

e o barro dos açudes amarelos
e o barro ocre-marrom
e o barro ocre-marrom cobre
cobre de doença, mata a fome
perpassando as tripas da barriga
...
e só a água cristalina
guardada na retina
não faria essa gente ó Deus
ó Deus não faria
essa gente sentir-se tão pobre

o caminhão-pipa não chega
a espera é um alento
para os pais sentinelas
e suas crianças magrelas
que as mães esperam
alheias ao frescor do vento

um relâmpago
esperança
um sorriso fugaz de todos
de todos sentirem a chuva
a lama do pó
do pó na entranha
que molha o pó de lágrimas

***


(scsul, 1998)